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sábado, 26 de fevereiro de 2011

Quando ia pelo caminho de

Quando ia pelo caminho de
saibro com a misteriosa carta
na mão, teve uma estranha
sensação. Imaginava-se como
um boneco que, por artes mágicas, se tivesse tornado vivo.
Não era estranho que estivesse no mundo e pudesse tomar parte naquela aventura?
Sherekan saltou elegantemente pelo caminho de saibro
e desapareceu por entre os
espessos arbustos. Um gato
vivo, desde a ponta dos bigodes brancos até à cauda ondulante na extremidade do corpo. Também ele estava no
jardim, mas certamente não
estava tão consciente disso
como Sofia.
Depois de ter pensado um
pouco acerca do facto de
existir, começou também a
pensar que não estaria ali
sempre.
"Neste momento estou no
mundo", pensou, "mas um dia
terei desaparecido".
Haveria uma vida após a
morte? O gato também não tinha a mínima consciência deste problema.
A avó paterna de Sofia
tinha morrido recentemente.
Quase todos os dias, há mais
de meio ano, Sofia pensava
no quanto sentia a sua falta.
Não era injusto que a vida
tivesse sempre um fim?
Sofia parou no caminho de
saibro, cismando. Procurou
concentrar-se no facto de
existir, procurando assim esquecer que não existiria sempre. Mas isso era de todo impossível. Quando se concentrava no pensamento da sua
existência, emergia imediatamente a ideia do fim da vida.
O contrário era igualmente
verdadeiro: só quando se
apercebia que um dia teria
desaparecido, compreendia
claramente que a vida era infinitamente valiosa. Era como as duas faces da mesma
moeda, uma moeda que ela virava constantemente. E quanto maior e mais clara era uma
face da moeda, maior e mais
clara se tornava também a outra. A vida e a morte eram
duas faces do mesmo problema.
Não podemos imaginar que
vivemos sem pensar que temos
de morrer, dizia para consigo. Do mesmo modo, é impossível reflectir sobre o facto
que temos de morrer sem sentirmos simultaneamente que
viver é algo maravilhoso.
Sofia lembrou-se que a
avó, no dia em que soubera da
sua doença, dissera algo semelhante. - Só agora tomo
consciência de como a vida é
rica - dissera ela.
Não era triste que a maior
parte das pessoas tivesse que
ficar doente para reconhecer
que a vida era bela? Talvez
tivesse bastado receber uma
carta misteriosa!
Decidiu verificar se teria
chegado algo mais. Sofia
correu para o portão e espreitou para dentro da caixa
do correio. Ficou espantada quando

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encontrou um envelope totalmente idêntico. Mas, será
que verificara, quando retirou a primeira carta, se a
caixa estava, de facto, vazia?
Naquele envelope também
estava escrito o seu nome.
Abriu-o e retirou uma folha
branca, igual à primeira.
“De onde vem o mundo”? -
estava escrito.
Não fazia ideia. Ninguém
sabe tal coisa! E, no entanto, Sofia achou esta pergunta legítima. Pela primeira
vez na sua vida pensou que
era quase impossível viver
num mundo sem perguntar pela
sua origem.
Sofia tinha ficado tão
perturbada com a misteriosa
carta que decidiu ir para a
sua toca. A toca de Sofia
era um esconderijo. Só ia
para lá quando estava muito
irritada, muito triste ou
muito contente. Nesse dia
estava confusa.

A casa vermelha ficava no
meio de um extenso jardim.
Havia aí muitos canteiros,
groselheiras e diversas árvores de fruto, um grande relvado com um baloiço e inclusivamente um pequeno caramanchão que o avô construíra
para a avó, quando a sua primeira filha morreu, poucas
semanas após o nascimento. A
pobre criança chamava-se Marie. Na lápide do seu túmulo
estava escrito: "A pequena
Marie veio ao nosso encontro, acenou-nos e foi-se embora".
Num canto do jardim, por
detrás das framboeseiras, havia uma espessa moita que não
produzia nem flores nem bagas. Na realidade, tratava-se de uma velha sebe, que
fazia fronteira com o bosque,
e que tinha crescido até se
transformar numa moita impenetrável porque, nos últimos
vinte anos, ninguém cuidara
dela. A avó contara que durante a guerra, altura em que
as galinhas corriam livremente pelo jardim, a sebe tinha
tornado um pouco mais difícil
a caça às galinhas, levada a
cabo pelas raposas.
Para os outros, a velha
sebe era tão inútil como as
coelheiras antigas, que ficavam um pouco mais à frente no
jardim. Mas ninguém conhecia
o segredo de Sofia. Tanto
quanto Sofia se conseguia
lembrar, tinha descoberto uma
estreita passagem através da
sebe. Quando a atravessava
de gatas, atingia rapidamente
um grande espaço, que era o
seu esconderijo. Aí, podia
estar completamente segura de
que ninguém a encontraria.
Com os envelopes na mão,
Sofia atravessou o jardim
correndo e rastejou com o
apoio dos braços através da
sebe. A toca era tão grande,
que quase podia ficar de pé,
mas decidiu sentar-se numas
raízes grossas. De dentro
conseguia ver para o exterior, através de dois orifícios minúsculos, por entre
ramos e folhas. Apesar de
nenhuma destas aberturas ser
maior do que uma moeda, ela
tinha o panorama

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de todo o jardim. Quando era
mais pequena, observava divertida a mãe ou o pai à sua
procura, no meio das árvores.
Para Sofia, o jardim tinha sido sempre um mundo à
parte. Sempre que ouvira falar do jardim do Éden na
história da Criação, lembrava-se da sua toca e de como
era estar lá sentada e observar o seu próprio pequeno paraíso.
"De onde vem o mundo?"
Não, ela não o sabia.
Sofia sabia obviamente que a
Terra era apenas um pequeno
planeta no universo imenso.
Mas de onde vinha o universo?
Era possível pensar que o
universo tivesse existido
sempre; sendo assim, não precisava de procurar a resposta
para a pergunta sobre a sua
origem. Mas poderia alguma
coisa ser eterna? Qualquer
coisa nela recusava esta
ideia. Tudo o que existe tem
que ter um começo. Por isso,
o universo tinha de ter surgido de outra coisa.
Mas se o universo tivesse
surgido subitamente de uma
outra coisa, então também
esta outra coisa teria de ter
surgido, a dada altura, de
uma outra. Sofia compreendeu
que apenas diferia o problema. Afinal, alguma coisa teria de ter surgido do nada a
certa altura. Mas seria isso
possível? Este pensamento
não seria tão impossível como
o de o mundo ter sempre existido?
Na aula de religião,
aprendiam que Deus tinha
criado o mundo, e Sofia procurou então tranquilizar-se
com a ideia de que essa era,
no fundo, a melhor solução
para o problema. No entanto,
começou de novo a pensar.
Podia facilmente aceitar que
Deus tivesse criado o universo, mas o que se passava
pensando em Deus? Será que
se tinha criado a si mesmo do
nada? De novo, algo nela
discordava deste pensamento.
Apesar de Deus poder criar
todas as coisas, dificilmente
se poderia criar a si mesmo,
antes de ter um "ele mesmo",
com o qual pudesse criar.
Restava apenas uma possibilidade: Deus existira sempre. Mas ela já pusera de
parte essa possibilidade.
Tudo o que existia tinha de
ter um começo.
- Que diabo!
Abriu de novo os envelopes.
- Quem és tu?
- De onde vem o mundo?
Que perguntas terríveis!
E de onde vinham ambas as
cartas? Isso era igualmente
misterioso.
Quem é que arrancara Sofia à realidade quotidiana e
a confrontara subitamente com
os grandes enigmas do universo?
Pela terceira vez, Sofia
foi à caixa do correio. Só
nesta altura é que o carteiro
tinha trazido a correspondência diária. Sofia retirou um

Saltou do banco e, com a

Saltou do banco e, com a
estranha carta na mão, dirigiu-se para o quarto de banho. Colocou-se em frente do
espelho, e olhou-se fixamente
nos olhos.
- Eu sou Sofia Amundsen - disse.
A rapariga do espelho nem
sequer respondeu com uma careta. Aquilo que Sofia fizesse, ela fá-lo-ia exactamente da mesma forma. Sofia
procurava adiantar-se em relação ao espelho com um movimento muito rápido, mas a outra era igualmente rápida.
- Quem és tu? - perguntou Sofia.
De novo não recebeu nenhuma resposta, mas por um breve
momento não soube se tinha
sido ela ou o seu reflexo no
espelho a fazer a pergunta.
Sofia tocou com o indicador no nariz reflectido no
espelho e disse:
- Tu és eu.
Não recebendo resposta alguma, inverteu a frase:
- Eu sou tu.
Sofia Amundsen nunca estivera particularmente satisfeita com a sua figura. Ouvia frequentemente dizer que
tinha uns belos olhos de
amêndoa, mas as pessoas diziam-no, sem dúvida, porque o
seu nariz era demasiado pequeno e a boca um pouco grande. Além disso, as orelhas
estavam demasiado junto aos
olhos. Mas o mais grave eram
os cabelos lisos, difíceis de
tratar. Por vezes, o pai
passava a mão pelos seus cabelos e chamava-lhe "a rapariga dos cabelos de linho",
referindo-se a uma composição
de Claude Debussy. Para
ele era fácil dizê-lo, visto
que não estava condenado para
toda vida a ter cabelos compridos e negros, completamente lisos. Nos cabelos de
Sofia nem o gel nem os
sprays faziam efeito.
Por vezes, achava-se tão
estranha que se perguntava se
não seria disforme de nascença. A sua mãe tinha-lhe falado num parto difícil. Mas
seria possível o nascimento
determinar, de facto, a figura de cada um?
Não era estranho que ela
não soubesse quem era? Não
era absurdo não poder decidir
nada quanto à sua figura?
Tinha simplesmente nascido
consigo. Podia escolher os
seus amigos, mas não se escolhera a si mesma. Nunca tinha decidido que queria ser
um ser humano.

O que era um ser humano?
Sofia observou de novo a
rapariga do espelho.
- Vou mas é fazer os meus
trabalhos de biologia - disse, como que desculpando-se.
Em seguida, estava à entrada
da casa.
- Não, prefiro ir para o
jardim - pensou.
- Bichano, bichano, bichano!
Sofia enxotou o gato para
a escada e fechou a porta.

Nesse dia havia apenas uma

Nesse dia havia apenas uma
pequena carta na grande caixa
do correio, e era para Sofia.
"Sofia Amundsen", estava
escrito no pequeno envelope.
"Klõverveien 3". Era tudo,
sem remetente. A carta nem
sequer tinha selo.
Imediatamente após ter fechado o portão, Sofia abriu
o envelope. Encontrou uma
pequena folha, que não era
maior do que o respectivo envelope. Na folha estava escrito: “quem és tu”?
Mais nada. Não havia assinatura, apenas estas três
palavras escritas à mão, seguidas de um grande ponto de
interrogação.
Observou uma vez mais o
envelope. Sim, a carta era
de facto para si, mas quem é
que a tinha posto na caixa do
correio?
Sofia apressou-se a abrir
a porta da casa vermelha.

Como de costume, o gato
Sherekan saiu furtivamente
dos arbustos, saltou para o
patamar e enfiou-se em casa,
antes de Sofia fechar a porta.
- Bichano, bichano, bichano!

Se, por algum motivo, a
mãe de Sofia estava zangada,
dizia que a sua casa parecia
uma feira de animais. Uma
feira de animais era uma colecção de animais diversos e,
na realidade, Sofia estava
bastante satisfeita com a sua
colecção. No início, tinha
recebido um aquário com os
peixes dourados Caracolinho
Dourado, Capuchinho Vermelho e Diabrete. Mais tarde,
foi a vez dos periquitos Tom
e Jerry, a tartaruga Govinda e finalmente o gato amarelo Sherekan. Todos aqueles
animais eram uma espécie de
compensação pelo facto de a
sua mãe chegar tarde a casa e
de o seu pai estar quase sempre a viajar.
Sofia atirou a mala da escola para um canto e pôs um
prato com comida de gato para
Sherekan. Depois, foi sentar-se num banco da cozinha,
com a misteriosa carta na
mão.
Quem és tu?
Se ela soubesse! Era obviamente Sofia Amundsen,
mas quem era Sofia Amundsen? Ainda não tinha descoberto totalmente.
E se tivesse outro nome?
Anne Knutsen, por exemplo.
Seria então uma outra pessoa?
Subitamente, lembrou-se de
que o seu pai inicialmente
lhe gostaria de ter dado o
nome Synnõve. Sofia procurava imaginar como seria se
cumprimentasse alguém e se se
apresentasse como Synnõve
Amundsen - mas não, não
conseguia. Imaginava sempre
uma outra pessoa.

O JARDIM DO ÉDEN


“...algo teria de surgir a certa altura do nada...”

Sofia Amundsen regressava da escola. Percorrera com Jorunn o primeiro troço do caminho. Tinham conversado sobre robôs. Para Jorunn, o cérebro humano era um computador complexo. Sofia não estava de acordo. Um homem deveria ser algo mais do que uma máquina.
No supermercado, despediram-se. Sofia morava no extremo de um extenso bairro de vivendas e o caminho que tinha de percorrer para a escola era quase o dobro do de Jorunn. A sua casa parecia ficar no fim do mundo, porque atrás do jardim já não havia casas, apenas floresta.
Meteu para Kõveveien. No fim da rua, havia uma curva estreita, a que chamavam a
"Curva do Capitão", e onde quase só ao fim-de-semana se viam pessoas.
Era o começo de Maio.
Nalguns jardins, os narcisos
formavam coroas de flores sob
as árvores de fruto. As bétulas tinham uma fina penugem
verde.
Não era estranho que nessa
estação do ano tudo começasse
a crescer e a desenvolver-se?
Porque é que essa massa de
plantas verdes podia nascer
da terra inanimada logo que o
tempo ficava mais quente e os
últimos vestígios de neve tinham desaparecido?
Sofia espreitou para a
caixa do correio antes de
abrir o portão do jardim.
Geralmente havia muita publicidade e alguns envelopes
grandes para a sua mãe. Sofia
colocava sempre um monte
de cartas na mesa da cozinha,
indo depois para o quarto fazer os trabalhos de casa.
Para o seu pai chegavam
por vezes cartas do banco,
mas ele também não era um pai
comum. O pai de Sofia era
capitão num petroleiro e estava fora quase todo o ano.
Quando regressava a casa
por poucas semanas, deambulava de chinelos pela casa, e
cuidava de Sofia e da mãe de
uma forma enternecedora. No
entanto, quando estava em
viagem, podia parecer muito
distante

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